sábado, 25 de setembro de 2010

Seria uma vez…

Mariana Cortez


José Saramago bebeu na fonte da História para recontá-la, dando vozes aos excluídos. Foi assim que ele substituiu o que foi pelo o que poderia ter sido

Walter Benjamin em O Narrador – considerações sobre a obra de Nicolai Leskov, de 1936, sentencia a morte do narrador. Para esse teórico, a função do narrador era a força motriz das histórias orais, por isso essa figura deveria ser partícipe da comunidade e deveria cumprir o papel, via narrativa, do “conselheiro” daquele grupo de pessoas. Ainda, acrescenta que existia uma tipologia de narradores que obedecia ao seguinte critério: o camponês-sedentário, aquele que narrava a partir dos relatos ouvidos e o comerciante-viajante, aquele que relatava as suas aventuras em terras distantes.

Com a criação da imprensa, contudo, o romance extinguiria a narração e a figura do narrador, era o que acreditava Benjamin. Mas, quem tem a literatura sob controle.

Nasce neste cenário em que a imprensa ganha majestade, numa aldeia de Portugal (Azinhaga, província do Ribatejo), filho de camponeses, um romancista que narraria ao “pé de ouvido”, como postulado por Benjamin, mas que utilizaria a tinta como instrumento de persuasão.

O autor dessa façanha é ninguém menos que o único Prêmio Nobel de Literatura em Língua Portuguesa, José Saramago (1922-2010). Com ares de avô, que coloca os netos ao colo, sua narração é conselho, como quer Benjamin. Mas ele não é nem viajante nem sedentário. Ele é, sobretudo, leitor: filósofo, crítico, cidadão. Um leitor, portanto, atento ao mundo, às questões fundamentais que constituem a humanidade no que ela tem de mais verdadeiramente humano, seus erros.

O seu modo de narrar – com perguntas, hesitações, respiros, circularidade, devaneio – acolhe o outro leitor, que ao entrar nesse universo construído parece ouvir ao longe aquele senhor sentado que conta uma história que tem muito de verdade e assim, nessa conversa, o leitor é convidado o tempo todo a refletir, a questionar a ordem estabelecida, a atuar sobre a condição imposta e, claro, por vezes a assumir outra visão do mundo, já que foi dissuadido por aquele hábil contador.

Autor/Narrador

Como grande leitor que era, criará seu narrador, que segundo ele é ele mesmo: “Não é nada dramático. O narrador dos meus livros é o próprio autor deles”. Com o intuito de contar outra versão de uma história conhecida, recriará desde Portugal e toda a Península Ibérica (Levantado do Chão, de 1980, Jangada de Pedra, de 1986) até escritos, que os cristãos assumem como verdades incontestáveis (O Evangelho Segundo Jesus Cristo, de 1991). Essa guinada de perspectiva lhe renderá o autoexílio.

Aborrecido com a intransigência da Igreja Católica de seu país, partirá para a Espanha – Ilha de Lanzarote, onde viverá até a sua recente morte em 18 de junho de 2010.

Sua fonte, portanto, é a História, mas sua perspectiva é a do excluído, daquele que não teve voz na narração histórica estabelecida pelo poder dos que venceram e que pela força do poder instituído habitam o universo escolar. Trazer a obra de Saramago para os bancos escolares é contar uma nova história. Segundo o próprio autor: “Quando digo corrigir, corrigir a História, não é no sentido de corrigir os factos da História, pois essa nunca poderia ser tarefa de romancista, mas, sim, de introduzir nela pequenos cartuchos que façam explodir o que até então parecia indiscutível: por outras palavras, substituir o que foi pelo que poderia ter sido. (…) Simplesmente, se a leitura histórica, feita por via do romance, chegar a ser uma leitura crítica, não do historiador, mas da História, então essa nova operação introduzirá, digamos, uma instabilidade, uma vibração, precisamente causadas pela perturbação do que poderia ter sido, quiçá tão útil a um entendimento do nosso presente como a demonstração efectiva, provada e comprovada do que realmente aconteceu”. (SARAMAGO, J.L., Ano X, nº 400, pág. 19).

Outro olhar

No documentário Língua: Vidas em Português (coprodução Brasil-Portugal), Saramago diz que para se conhecer um objeto, poderia se supor também uma situação – “há que se dar a volta”. Uma coroa pode parecer perfeita num primeiro olhar, contudo, se a circundamos, ela pode estar corroída do outro lado. Aí está o ponto de vista saramaguiano. No conto Cadeira, da coletânea Objecto Quase (1994), o autor conta sobre a queda de um ditador, mas o que interessaria descrever é a cadeira que está corroída- e que devagar derrubará o opressor, evidentemente, uma metáfora de um sistema de governo.

Além da mudança de perspectiva da História que aliará realidade e ficção, corroborando o ideário pós-moderno da metaficção historiográfica, como formula Linda Hutcheon (Poética do Pós-Modernismo, Rio de Janeiro, Imago, 1991) e amplamente exercitado por Umberto Eco, para citar outro autor; os ditados populares, expressão fundamental à cultura, permearão os escritos saramagianos. Seja “em terra de cego quem tem olho é rei” (Ensaio sobre a Cegueira), seja nas reflexões mais populares e angustiantes sobre a morte, como no conto Refluxo (Objecto Quase), em que o rei quer eliminar a morte do reino e constrói um cemitério cercado por muros, para que a morte fique longe dos olhos (“o que os olhos não veem, o coração não sente”). Essa “verdade” fabulada é, pois, a sua sentença: “Continuo a pensar que o narrador não existe, quem existe é o autor, que tem uma história na cabeça e a quer passar ao papel. E como isso para mim é quase uma regra de ouro, estou presente, admito que às vezes até de mais, no que escrevo. Não para falar de mim, mas para dar as minhas opiniões, as minhas ‘sentenças’”.

Independentemente de a crítica literária concordar ou discordar do posicionamento assumido pelo autor, vale trazer à tona esse narrador saramaguiano inquieto, bem ao modo de Benjamin, que joga com o leitor num vaivém de acolhimento e desequilíbrio. Eis a magia do grande narrador, a quem rendemos oportuna homenagem.

(sitio da Carta Capital)

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