domingo, 14 de novembro de 2010

Bem-vindos à luta de classes!



Ontem à tarde, em Santa Maria, região central do estado
do Rio Grande do Sul, aconteceu uma manifestação de estudantes
que frequentam cursinhos de ensino privado de nível pré-universitário.
O ótimo vídeo acima (feito pelo Diário de Santa Maria/RBS) mostra
quem são esses alunos, todos brancos e filhos da classe média
capacitada a pagar ensino privado para os seus filhos e filhas.
Veja se você encontra um/a negro/negra nesta multidão de branquinhos
com indumentária up to date e de griffe? Procure bem. Veja de novo.
Essa rapaziada tem cheiro de Mickey Mouse, no entanto, protestam
contra a Universidade Federal de Santa Maria para que a política de
cotas seja revista e rejeitada pela Reitoria.

É disso que se trata: luta de classes e, sobretudo, luta de raças.

Hoje pela manhã, tivemos informação que alunos dos cursos privados
Universitário, Unificado e Anglo estão visitando escolas públicas da
rede estadual de ensino de Porto Alegre visando mobilizar estudantes
para uma grande manifestação contra o Enem, nos próximos dias.
A coisa tem cheiro de pau-mandado.

É de estranhar que - subitamente - desperte a chama da indignação
política em alunos de cursinhos pré-universitários, sabidamente
virgens do espírito combativo do reconhecido e autêntico movimento
estudantil brasileiro, vanguarda permanente em todas as grandes
lutas políticas do Brasil, nos últimos setenta anos (desde 1937,
pelo menos, quando da fundação da UNE).

De qualquer forma, é de se estimular a politização dos estudantes
da direita brasileira, mesmo que estejam claramente instrumentalizados
pelos interesses (ocultos) dos proprietários de escolas privadas de ensino,
em todos os graus. O debate aberto e sincero, o conflito mesmo,
entre os interesses que se chocam neste episódio do Enem é o
melhor caminho para as soluções estratégicas de que necessita
a nossa política educacional.

Estudantes brancos, filhinhos de papai e alienadinhos de todo o gênero:
bem-vindos à luta de classes! O tio Mickey se orgulha de vocês!

Do blog Diário Gauche (Cristovão Feil)

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Voz dos donos: o seletor de opiniões

Artigo publicado originalmente no Observatório da Imprensa

Liberdade de expressão parece ser um seletor de opiniões grudado nas mãos dos donos de veículos de comunicação ou de seus prepostos (diretores de Redação, editores-chefes, editores em geral). A liberdade de expressão pode até ser exercida, mas seu alcance é limitado e não pode, em hipótese alguma, ultrapassar a cadeia hierárquica de comando. Que é louvável clamar por esta preciosa liberdade ninguém tem dúvidas, mas que é execrável concedê-la apenas aos que se alinham com a ideologia dos patrões, pouca gente se arrisca a duvidar.
Vejamos alguns casos bem recentes. Observo que ver apenas um caso nas cercanias da própria imprensa já reclamaria uma boa dose de atenção. Pois bem, até as paredes e os cenários da Fundação Padre Anchieta, mantenedora da TV Cultura, sabem o que teria sido o real motivo para a demissão do experiente jornalista e apresentador de tevê Heródoto Barbeiro: o exercício de sua liberdade para perguntar, da bancada do programa Roda Viva, ao ex-governador José Serra sobre os preços dos pedágios paulistas (ver aqui). No entanto, são estes mesmos que demitem, que mostram truculência e que desfraldam bandeiras pela liberdade de expressão; que altas horas da madrugada mostram-se receptivos a telefonemas exigindo a demissão desse ou daquele profissional que, na pior das hipótese, tenha cometido por pensamento ou por ação apenas um crime: o crime de pensar.
Não mais que passada uma semana e, em 8 de julho deste 2010, ainda na mesma emissora de cunho estatal, ficamos sabendo pela contumaz marolinha com que a imprensa repercute casos do gênero que o jornalista Gabriel Priolli deixara de ser diretor de jornalismo da TV Cultura. A decisão, tomada pelo jornalista Fernando Vieira de Mello, vice-presidente de conteúdo da emissora, alimentou boatos a respeito da ingerência política sobre o canal. O fato é que tanto nos corredores da emissora como na blogosfera, circulou – e ainda circula – a informação de que, por trás da demissão de Priolli, pendia em forma de guilhotina uma suculenta matéria sobre – adivinhem – o aumento nos pedágios paulistas.
Mais um pouco e ficaremos convencidos de que no jornalismo paulista expressões como "pedágios" e "liberdade de expressão" são como óleo e água e não podem conviver em uma mesma Redação. Um deles tem que cair, sumir, desaparecer, submergir, calar.

Indignação e espanto
Curioso é que o ato de pensar equivale em importância ao mesmo que cimento e tijolos representam para se tirar da prancheta de um arquiteto uma casa. Chama a atenção a este observador que nesses dois casos nem Barbeiro nem Priolli levaram os lábios ao trombone. No segundo caso é fácil de entender o motivo, uma vez que ele é funcionário da Cultura.
Mas tinha que ser assim? Estaremos diante de um imenso trololó midiático, essa coisa de defender em público seus próprios interesses e em privado fazer o que bem entender e do jeito que melhor lhes convier?
E, então, ficamos sabendo que o crime de pensar pode ser letal se não altamente contagioso: a psicanalista Maria Rita Kehl foi demitida do jornal O Estado de S. Paulodepois de ter escrito, no sábado (2/10), artigo sobre a "desqualificação" dos votos dos pobres. Sintomaticamente, recebeu como título duas palavras e reticências: "Dois pesos...". Mas foi sua possível continuação – ... duas medidas – que levantou ondas e ondas na internet. Todas elas mesclando indignação e espanto por ver como é comum que nas casas dos abastados ferreiros os espetos continuem teimando em ser de pau.

140 toques
A explicação oficial do jornal paulista é que a colunista vinha de há muito enveredando por outros assuntos em sua coluna, que não os da psicanálise. Ora essa, pergunto a minha camisa sem botões: de qual tipo de imprensa estamos falando, quando se enquadra de forma muito natural o campo de expressão de um colunista? Então, na condição de psicanalista, é-lhe vedado abordar política? Tratar de política é campo de algum especialista somente – aqueles que portam carteirinha partidária – ou não se configura o tipo de tema que diz respeito ao interesse de todos nós cidadãos?
Sigamos em frente, do contrário este artigo corre risco de ficar inconcluso. Pois bem, Maria Rita, em sua elegância habitual e refinamento intelectual, afixou em entrevista ao Portal Terra na quinta-feira (7/10), este punhado de palavras sobre sua derrubada do Estadão: "Fui demitida pelo jornal O Estado de S.Paulo pelo que consideraram um ‘delito’ de opinião." A partir disso minha admiração por ela só fez crescer e olha que já era bem grande.

Na semana que findou o mundo, aquele mundo amante da liberdade de expressão festejou o Premio Nobel da Paz concedido ao pensador chinês Lio Xiaobo, preso por escrever um manifesto pela liberdade de expressão na China. Alguns poucos se apressaram em homenagear Xiaobo. Um deles foi o ex-governador paulista José Serra que escreveu em seu twitter: "O ganhador do Nobel da Paz foi o professor chinês Liu Xiaobo, preso por ter publicado um manifesto em defesa da liberdade de expressão". Assíduo no twitter, bem que ele poderia ter teclado mais 140 caracteres para dizer algo como: "Mas se ele fosse brasileiro e escrevesse num jornal paulista, Xiaobo seria demitido".
Pelo que vejo existem legiões de pessoas decididas a cometer o crime de pensar.


Washington Araújo é jornalista e escritor. Mestre em Comunicação pela
UNB, tem livros sobre mídia, direitos humanos e ética publicados no Brasil,
Argentina, Espanha, México. Tem o blog http://www.cidadaodomundo.org
Email - wlaraujo9@gmail.com

Retirado do sitio Carta Maior

NEM O APARTHEID DERROTARIA DILMA

Mesmo que o Nordeste - onde Dilma teve 10.717.434 de votos a mais do
que Serra - fosse excluído do acesso às urnas, como acalentam o elitismo
preconceituoso e a extrema direita política, ainda assim a petista venceria
o tucano por um saldo de 1,3 milhão de votos, ou 0,9%.

(Carta Maior; 02-11)

A PRESIDENCIA DE UM PROJETO HISTÓRICO

Passada a refrega eleitoral de 12 milhões de votos -- vantagem de Dilma sobre Serra-- 'formuladores' tucanos e jornalistas associados tentavam ansiosamente, ontem, em diferentes sessões televisivas, e hoje, nos jornais, curar cicatrizes fundas com unguentos falsos. Um deles, o mais ingenuo, endossado pelo candidato derrotado em seu pronunciamento, sugere que o robusto revés dos votos credenciou Serra a ocupar o posto de líder da oposição a Dilma Rousseff. A união oposicionista que ancora esse raciocícnio é puro miolo de pote, não existe. Sintomático foi o desconcertante antagonismo entre um discurso pretensioso, embora calcado em lugares comuns ginasianos --"estamos apenas começando'; não é um adeus, mas um até logo'-- e o gélido isolamento do derrotado. Dos dez governadores eleitos pela oposição, apenas Geraldo Alckmin fazia figuração ao lado de Serra depois que as urnas deram seu veredicto. Ninguém se baldeou do estado de origem para prestigiar o 'novo líder da oposição' na sua hora mais difícil. São prenúncios de que o ex-governador de SP, a partir de agora, é serio candidato a virar pasta de atum no acerto de contas com desafetos e tubarões da coalizão demotucana. A eles Serra se impôs mais pelo uso da truculência abaixo da linha da cintura, do que pelo endosso a um projeto ou a uma vontade manifesta. Se projeto havia no caso da sua candidatura era autobiográfico. Sugestivamente, trata-se de um critério que a mídia demotucana considera legítimo, da mesma forma que manifesta estranhamento em relação à arquitetura oposta, dardejada com manifestações de ignorancia depreciativa. O estranhamento é recíproco. Dilma sempre se colocou como candidata de um projeto histórico, que tem em Lula seu principal líder e fiador. Nisso reside a sua força, assim como no oposto individualista mora o esfarelamento previsível de Serra. Se o tucano sai menor das urnas, como disse o Presidente Lula, o desafio de Dilma, a partir de agora, será consolidar as linhas de passagem que tornem transparente aquilo que de fato ela representa e seu governo deve espelhar: constituir-se em um novo patamar de aglutinação das forças sociais e da respectiva agenda de prioridades a elas associadas nos oito anos de governo Lula. Somente esse sentido coletivo de projeto, ausente no repertório da direita nativa e de seu candidato, dará a Dilma a base necessária e a clareza de objetivos para avançar. Nesse sentido, certas lições reiteradas mais uma vez nesta campanha não podem ficar de fora do reordenamento de prioridades para os próximos anos: uma delas é a necessidade de se romper o monopólio midiático para que a democracia brasileira possa, de fato, ser o regime cujo poder emana do povo.
Carta Maior - 02/11

terça-feira, 26 de outubro de 2010

De Carlos Moura, com carinho, para Noblat


publicada terça-feira, 26/10/2010 às 17:57 e atualizada terça-feira, 26/10/2010 às 18:36

Publico a carta aberta de Carlos Moura (aposentado, fotógrafo, redator de jornal de interior, sócio de uma pequena editora de livros clássicos e coordenador da Ação da Cidadania em Além Paraíba-MG) para o jornalista de “O Globo” Ricardo Noblat.

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Noblat

Quem é você para decidir pelo Brasil (e pela História) quem é grande ou quem deixa de ser? Quem lhe deu a procuração? O Globo? A Veja? O Estadão? A Folha?

Apresento-me: sou um brasileiro. Não sou do PT, nunca fui. Isso ajuda, porque do contrário você me desclassificaria, jogando-me na lata de lixo como uma bolinha de papel. Sou de sua geração. Nossa diferença é que minha educação formal foi pífia, a sua acadêmica. Não pude sequer estudar num dos melhores colégios secundários que o Brasil tinha na época (o Colégio de Cataguases, MG, onde eu morava) porque era só para ricos. Nas cidades pequenas, no início dos sessenta, sequer existiam colégios públicos. Frequentar uma universidade, como a Católica de Pernambuco em que você se formou, nem utopia era, era um delírio.

Informo só para deixar claro que entre nós existe uma pedra no meio do caminho. Minha origem é tipicamente “brasileira”, da gente cabralina que nasceu falando empedrado. A sua não. Isto não nos torna piores ou melhores do que ninguém, só nos faz diferentes. A mesma diferença que tem Luis Inácio em relação ao patriciado de anel, abotoadura & mestrado. Patronato que tomou conta da loja desde a época imperial.

O que você e uma vasta geração de serviçais jornalísticos passaram oito anos sem sequer tentar entender é que Lula não pertence à ortodoxia política. Foi o mesmo erro que a esquerda cometeu quando ele apareceu como líder sindical. Vamos dizer que esta equipe furiosa, sustentada por quatro famílias que formam o oligopólio da informação no eixo Rio-S.Paulo – uma delas, a do Globo, controlando também a maior rede de TV do país – não esteja movida pelo rancor. Coisa natural quando um feudo começa a dividir com o resto da nação as malas repletas de cédulas alopradas que a União lhe entrega em forma de publicidade. Daí a ira natural, pois aqui em Minas se diz que homem só briga por duas coisas: barra de saia ou barra de ouro.

O que me espanta é que, movidos pela repulsa, tenham deixado de perceber que o brasileiro não é dançarino de valsa, é passista de samba. O patuá que vocês querem enfiar em Lula é o do negrinho do pastoreio, obrigado a abaixar a cabeça quando ameaçado pelo relho. O sotaque que vocês gostam é o nhém-nhém-nhém grã-fino de FHC, o da simulação, da dissimulação, da bata paramentada por láureas universitárias. Não importa se o conteúdo é grosseiro, inoportuno ou hipócrita (“esqueçam o que eu escrevi”, “ tenho um pé na senzala” “o resultado foi um trabalho de Deus”). O que vale é a forma, o estilo envernizado.

As pessoas com quem converso não falam assim – falam como Lula. Elas também xingam quando são injustiçadas. Elas gritam quando não são ouvidas, esperneiam quando querem lhe tapar a boca. A uma imprensa desacostumada ao direito de resposta e viciada em montar manchetes falsas e armações ilimitadas (seu jornal chegou ao ponto de, há poucos dias, “manchetar” a “queda” de Dilma nas pesquisas, quando ela saiu do primeiro turno com 47% e já entrou no segundo com 53 ) ficou impossível falar com candura. Ao operário no poder vocês exigem a “liturgia” do cargo. Ao togado basta o cinismo.

Se houve erro nas falas de Lula isto não o faz menor, como você disse, imitando o Aécio. Gritos apaixonados durante uma disputa sórdida não diminuem a importância histórica de um governo que fez a maior revolução social de nossa História. E ainda querem que, no final de mandato, o presidente aguente calado a campanha eleitoral mais baixa, desqualificada e mesquinha desde que Collor levou a ex-mulher de Lula à TV.

Sordidez que foi iniciada por um vendaval apócrifo de ultrajes contra Dilma na internet, seguida das subterrâneas ações de Índio da Costa junto a igrejas e da covarde declaração de Monica Serra sobre a “matança de criancinhas”, enfiando o manto de Herodes em Dilma. Esse cambapé de uma candidata a primeira dama – que teve o desplante de viajar ao seu país paramentada de beata de procissão, carregando uma réplica da padroeira só para explorar o drama dos mineiros chilenos no horário eleitoral – passou em branco nos editoriais. Ela é “acadêmica”.

A esta senhora e ao seu marido você deveria também exigir “caráter, nobreza de ânimo, sentimento, generosidade”.

Você não vai “decidir” que Lula ficou menor, não. A História não está sendo mais escrita só por essa súcia de jornais e televisões à qual você pertence. Há centenas de pessoas que, de graça, sem soldos de marinhos, mesquitas, frias ou civitas, estão mostrando ao país o outro lado, a face oculta da lua. Se não houvesse a democracia da internet vocês continuariam ladrando sozinhos nas terras brasileiras, segurando nas rédeas o medo e o silêncio dos carneiros.

Carlos Torres Moura

Além Paraíba-MG

Retirado com boas intenções do ESCRIVINHADOR.

terça-feira, 28 de setembro de 2010

A imprensa, verdadeira oposição no Brasil

Por Eric Nepomuceno

Artigo publicado originalmente no jornal Página/12

Considerado o fundador do Estado moderno no Brasil, Getúlio Vargas foi alvo de uma contundente campanha encabeçada pelo jornal Tribuna da Imprensa, do Rio de Janeiro. Terminou se suicidando com um tiro no coração em agosto de 1954. Criador de Brasília e um dos presidentes mais populares do Brasil, Juscelino Kubitschek enfrentou a resistência feroz do conservador O Estado de São Paulo. Acusado de corrupção irremediável, jamais se comprovou nada contra ele. Histórico dirigente da esquerda, o trabalhista Leonel Brizola foi governador do Rio de Janeiro em 1982, no início do processo da democratização, e passou seus dois governos sob uma campanha implacável (e freqüentemente mentirosa) do mais poderoso grupo de comunicações da América Latina, que controla a TV Globo e o jornal O Globo.

Nunca antes, porém, um presidente foi tão perseguido pelos meios de comunicação como ocorre com Luiz Inácio Lula da Silva. Com freqüência assombrosa foram abandonadas as regras básicas do mínimo respeito cidadão. Um bom exemplo disso é a revista Veja, semanário de maior circulação no país, que sem resquícios de pudor público denuncia escândalos em seqüência que acabam não sendo comprovados. Em sua página na internet abriga comentaristas que tratam o presidente da Nação de “essa pessoa”. O mesmo grupo que controla a TV Globo, cujo noticiário tem a maioria da audiência, o matutino O Globo, principal jornal do Rio e segundo em circulação no Brasil, e a principal cadeia de rádio, CBN, não perde a oportunidade de destroçar Lula e seu governo, sem preocupar-se nem um pouco com a veracidade de seus ataques. O jornal Folha de São Paulo, de maior circulação no país, divulga qualquer denúncia como se fosse verdadeira e não se priva de aceitar que um ex-condenado por receptação de mercadorias roubadas e circulação de dinheiro falso se transforme em “consultor de negócios” e lance acusações sem apresentar nenhuma prova. Até o conservador O Estado de São Paulo, que até agora era o mais equilibrado na oposição ao governo, optou por ingressar neste jogo sem regras nem norte.

Frente á inércia dos principais partidos de oposição, o PSDB e o DEM, os meios de comunicação ocupam organicamente esse espaço. Isso foi admitido, há alguns meses, pela própria presidente da Associação nacional de Jornais (ANJ), Judith Brito, da Folha de São Paulo. Mais grave, porém, é o que nenhum destes grupos admite: mesmo antes de iniciar a campanha sucessória de Lula, esse enorme partido informal (mas muito eficaz) de oposição optou por um candidato, José Serra, que não respondeu às suas expectativas. E frente à incapacidade de sua campanha eleitoral, os meios de comunicação brasileiros decidiram atacar a candidatura de Dilma Rousseff, ignorando os limites éticos.

Essa politização absoluta e essa tomada de posição pela imprensa terminaram por provocar a reação de Lula. Suas críticas, por sua vez, provocaram uma irada onda de novas denúncias, indicando que o presidente pretendia impedir a liberdade de expressão e de opinião. No entanto, em seus quase oito anos como presidente, Lula em nenhum momento representou uma ameaça à grande imprensa, por mais remota que fosse. Alguns movimentos para impor algumas regras e impedir a permanência de um esquema de quase monopólio foram neutralizados pelo próprio Lula que optou pelo não enfrentamento com as oito famílias que concentram o controle dos meios de comunicação no maior país latinoamericano.

A liberdade de imprensa é absoluta no Brasil, ao ponto de ter se transformado em liberdade de caluniar. Os grosseiros ataques, freqüentemente baseados em nada, contra Lula e seus governo aparecem todos os dias, sem que ninguém trate de impedi-los. E, ainda assim, os grandes meios não deixam de denunciar ameaças à liberdade de expressão. Talvez a razão de tudo isso repouse no que ocorreu quando o Brasil voltou á democracia, há 25 anos. Ao contrário do que ocorreu em outros países que reencontraram a democracia – penso especificamente nos casos da Espanha e da Argentina -, no Brasil a imprensa não se democratizou. Não surgiram alternativas que respondessem aos diferentes segmentos políticos e ideológicos. Prevaleceu o cenário em que cada meio apresenta o eco de uma mesma voz, a do sistema dominante.

Para esse sistema, Lula era um risco suportável. Já a sua sucessão é outra coisa. E se o candidato da oposição se mostra um incapaz, o verdadeiro partido oposicionista revela sua cara mais feroz. Ao exercer a liberdade do denuncismo barato, mostra seu inconformismo com a manifestação do desejo dessa massa de ignaros que é chamada de povo. Essa gente que não era nada e passou a se considerar cidadã. Isso sim é inadmissível.

(*) Jornalista, escritor e tradutor

Tradução: Katarina Piexoto

Carta Maior

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Um novo consenso nacional

Daqui a alguns dias o Brasil decide se o governo Lula é um parêntesis e voltam as elites tradicionais ao governo ou se é uma ponte para dar continuidade e aprofundar a construção de uma sociedade justa, solidária e soberana.


Tendo praticamente toda a imprensa contra a candidata que encarna a continuidade do governo Lula, o fenômeno mais impressionante desta campanha é como a Dilma conseguiu obter um apoio tão generalizado da massa da população – em todos os estados, em todos os estratos sociais, em todos os níveis de instrução, nos dois gêneros. Expressa a falta de sintonia da imprensa tradicional brasileira com os desejos e valores da massa da população.

O governo Lula e a campanha da Dilma expressam, no apoio que recebem, um novo consenso, amplamente majoritário no país: que prioriza os direitos sociais, o papel ativo do Estado como indutor do desenvolvimento econômico e das políticas sociais, da soberania na política externa brasileira.

Concluir seus dois mandatos com mais de 80% de apoio e 4% de rejeição (Fernando Henrique Cardoso, exatamente há 8 anos, em setembro de 2002, tinha 50,9% de rejeição), rejeitar a tentação de um novo mandato (FHC mudou a Constituição durante seu primeiro mandato, para ter um segundo), lançar uma candidata que representa, da maneira mais direta, seu governo, submeter-se ao voto popular e, provavelmente, obter uma vitória no primeiro turno, representam não apenas um sucesso pessoal do Lula.

Representam o triunfo de valores que se contrapõem aos que reinaram na década de 90, reino neoliberal: os valores do mercado, de que tudo tem preço, tudo se vende, tudo se compra, tudo é mercadoria. Afirma-se hoje uma negação dessa visão de estilo shopping-center do mundo, calcada no “modo de vida norteamericano”, que privilegia o consumidor em detrimento do cidadão. Afirma-se hoje a esfera pública, a cidadania, o direito de acesso aos bens materiais e espirituais para todos e não apenas para a minoria para a qual se governava antes no Brasil.

O provável resultado eleitoral da vitória da Dilma no primeiro turno representará também o fim de carreira de toda uma geração de políticos que passaram a representa a direita no Brasil, assumindo o neoliberalismo como modelo: menos Estado, mais mercado, privatizações, abertura sem limites da economia, precarização das relações de trabalho, subserviência às políticas dos EUA no plano internacional, Tratado de Livre Comércio com Washington.

A provável convocatória a uma Assembléia Constituinte autônoma permitirá a reforma não apenas do sistema político, mas do próprio Estado brasileiro, que se tornou um Estado mínimo - abdicando de todas as funções econômicas para o mercado-, inadequado a um país que necessita crescer muito e reduzir as imensas desigualdades acumuladas ao longo dos séculos.

Daí a importância das eleições do próximo domingo, que podem ser um marco na superação da situação do Brasil ser o país mais desigual da América Latina, que por sua vez é o continente mais desigual do mundo. Esse processo apenas começou, requer agora o aprofundamento e a extensão das políticas de redistribuição de renda para políticas habitacionais, de saneamento básico, de transporte, de educação, de saúde publica. Para que sejamos não apenas uma democracia política, mas também econômica, social e cultural.

Porque se a distribuição de renda coloca a maioria da população no centro da pirâmide, isto não significa que passamos, em tão pouco tempo, a ser um país de classe média. Porque as condições mencionadas acima – habitação, saneamento básico, educação, saúde, transporte – continuam a ser muito ruins. É uma acumulação de miséria e de carências muito longa no tempo que para ser superada requer a continuidade, a extensão e o aprofundamento de políticas sociais amplas e articuladas por muito tempo.

Para o que necessitamos um Estado muito distinto deste – ineficiente, financeirizado -, necessitamos um Estado centrado na esfera pública, na afirmação dos direitos, na cidadania extensa a todos. Um Estado capaz de promover o desenvolvimento estreitamente articulado com políticas sociais redistributivas. Que possa incluir mecanismos como os do orçamento participativo, que integra a cidadania nas decisões políticas fundamentais.

Postado por Emir Sader às 04:25 no sitio da Carta Maior

sábado, 25 de setembro de 2010

Seria uma vez…

Mariana Cortez


José Saramago bebeu na fonte da História para recontá-la, dando vozes aos excluídos. Foi assim que ele substituiu o que foi pelo o que poderia ter sido

Walter Benjamin em O Narrador – considerações sobre a obra de Nicolai Leskov, de 1936, sentencia a morte do narrador. Para esse teórico, a função do narrador era a força motriz das histórias orais, por isso essa figura deveria ser partícipe da comunidade e deveria cumprir o papel, via narrativa, do “conselheiro” daquele grupo de pessoas. Ainda, acrescenta que existia uma tipologia de narradores que obedecia ao seguinte critério: o camponês-sedentário, aquele que narrava a partir dos relatos ouvidos e o comerciante-viajante, aquele que relatava as suas aventuras em terras distantes.

Com a criação da imprensa, contudo, o romance extinguiria a narração e a figura do narrador, era o que acreditava Benjamin. Mas, quem tem a literatura sob controle.

Nasce neste cenário em que a imprensa ganha majestade, numa aldeia de Portugal (Azinhaga, província do Ribatejo), filho de camponeses, um romancista que narraria ao “pé de ouvido”, como postulado por Benjamin, mas que utilizaria a tinta como instrumento de persuasão.

O autor dessa façanha é ninguém menos que o único Prêmio Nobel de Literatura em Língua Portuguesa, José Saramago (1922-2010). Com ares de avô, que coloca os netos ao colo, sua narração é conselho, como quer Benjamin. Mas ele não é nem viajante nem sedentário. Ele é, sobretudo, leitor: filósofo, crítico, cidadão. Um leitor, portanto, atento ao mundo, às questões fundamentais que constituem a humanidade no que ela tem de mais verdadeiramente humano, seus erros.

O seu modo de narrar – com perguntas, hesitações, respiros, circularidade, devaneio – acolhe o outro leitor, que ao entrar nesse universo construído parece ouvir ao longe aquele senhor sentado que conta uma história que tem muito de verdade e assim, nessa conversa, o leitor é convidado o tempo todo a refletir, a questionar a ordem estabelecida, a atuar sobre a condição imposta e, claro, por vezes a assumir outra visão do mundo, já que foi dissuadido por aquele hábil contador.

Autor/Narrador

Como grande leitor que era, criará seu narrador, que segundo ele é ele mesmo: “Não é nada dramático. O narrador dos meus livros é o próprio autor deles”. Com o intuito de contar outra versão de uma história conhecida, recriará desde Portugal e toda a Península Ibérica (Levantado do Chão, de 1980, Jangada de Pedra, de 1986) até escritos, que os cristãos assumem como verdades incontestáveis (O Evangelho Segundo Jesus Cristo, de 1991). Essa guinada de perspectiva lhe renderá o autoexílio.

Aborrecido com a intransigência da Igreja Católica de seu país, partirá para a Espanha – Ilha de Lanzarote, onde viverá até a sua recente morte em 18 de junho de 2010.

Sua fonte, portanto, é a História, mas sua perspectiva é a do excluído, daquele que não teve voz na narração histórica estabelecida pelo poder dos que venceram e que pela força do poder instituído habitam o universo escolar. Trazer a obra de Saramago para os bancos escolares é contar uma nova história. Segundo o próprio autor: “Quando digo corrigir, corrigir a História, não é no sentido de corrigir os factos da História, pois essa nunca poderia ser tarefa de romancista, mas, sim, de introduzir nela pequenos cartuchos que façam explodir o que até então parecia indiscutível: por outras palavras, substituir o que foi pelo que poderia ter sido. (…) Simplesmente, se a leitura histórica, feita por via do romance, chegar a ser uma leitura crítica, não do historiador, mas da História, então essa nova operação introduzirá, digamos, uma instabilidade, uma vibração, precisamente causadas pela perturbação do que poderia ter sido, quiçá tão útil a um entendimento do nosso presente como a demonstração efectiva, provada e comprovada do que realmente aconteceu”. (SARAMAGO, J.L., Ano X, nº 400, pág. 19).

Outro olhar

No documentário Língua: Vidas em Português (coprodução Brasil-Portugal), Saramago diz que para se conhecer um objeto, poderia se supor também uma situação – “há que se dar a volta”. Uma coroa pode parecer perfeita num primeiro olhar, contudo, se a circundamos, ela pode estar corroída do outro lado. Aí está o ponto de vista saramaguiano. No conto Cadeira, da coletânea Objecto Quase (1994), o autor conta sobre a queda de um ditador, mas o que interessaria descrever é a cadeira que está corroída- e que devagar derrubará o opressor, evidentemente, uma metáfora de um sistema de governo.

Além da mudança de perspectiva da História que aliará realidade e ficção, corroborando o ideário pós-moderno da metaficção historiográfica, como formula Linda Hutcheon (Poética do Pós-Modernismo, Rio de Janeiro, Imago, 1991) e amplamente exercitado por Umberto Eco, para citar outro autor; os ditados populares, expressão fundamental à cultura, permearão os escritos saramagianos. Seja “em terra de cego quem tem olho é rei” (Ensaio sobre a Cegueira), seja nas reflexões mais populares e angustiantes sobre a morte, como no conto Refluxo (Objecto Quase), em que o rei quer eliminar a morte do reino e constrói um cemitério cercado por muros, para que a morte fique longe dos olhos (“o que os olhos não veem, o coração não sente”). Essa “verdade” fabulada é, pois, a sua sentença: “Continuo a pensar que o narrador não existe, quem existe é o autor, que tem uma história na cabeça e a quer passar ao papel. E como isso para mim é quase uma regra de ouro, estou presente, admito que às vezes até de mais, no que escrevo. Não para falar de mim, mas para dar as minhas opiniões, as minhas ‘sentenças’”.

Independentemente de a crítica literária concordar ou discordar do posicionamento assumido pelo autor, vale trazer à tona esse narrador saramaguiano inquieto, bem ao modo de Benjamin, que joga com o leitor num vaivém de acolhimento e desequilíbrio. Eis a magia do grande narrador, a quem rendemos oportuna homenagem.

(sitio da Carta Capital)

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Veríssimo: Os últimos dez dias

Artigo de Luis Fernando Veríssimo publicado hoje no jornal O Estado de S.Paulo

De hoje à data da eleição teremos dez dias de manchetes nos jornais e duas edições da Veja. Não sei até quando podem ser publicadas as pesquisas sobre intenção de voto, mas até a última publicação - aquela que, segundo os céticos, é a mais confiável, pois é a que garante a credibilidade e o futuro dos pesquisadores - veremos uma corrida emocionante: o noticiário perseguindo os índices da Dilma para tentar derrubá-los antes da chegada, no dia 3. O prêmio, se conseguirem, será um segundo turno. Se não conseguirem a única dúvida que restará será: se diz a presidente ou a presidenta?


Até agora as notícias de corrupção na Casa Civil não afetaram os índices da Dilma. Estou escrevendo na terça, talvez as últimas pesquisas mostrem um efeito retardado. Mas ainda faltam dez dias de manchetes e duas edições da Veja, quem sabe o que virá por aí? O governo Lula tem um bom retrospecto na sua competição com o noticiário. A popularidade do Lula não só resistiu a tudo, inclusive às mancadas e aos impropérios do próprio Lula, como cresceu com os oito anos de denúncias e noticiário negativo. Desde UDN x Getúlio nenhum presidente brasileiro foi tão atacado e denunciado quanto Lula. Desde sempre, nenhum presidente brasileiro acabou seu mandato tão bem cotado.
Acrescente-se ao paradoxo o fato de que o eleitorado brasileiro é tradicionalmente, às vezes simplisticamente, moralista. Elegeu Jânio para varrer a sujeira do governo Juscelino, elegeu Collor para acabar com os marajás, aplaudiu a queda do Collor por corrupção presumida e houve até quem pedisse o impedimento do Itamar por proximidade temerária com calcinha transparente. Mas o moralismo tornou-se politicamente irrelevante com Lula e, por tabela, para os índices da Dilma. É improvável que volte a ser decisivo em dez dias. Mas nunca se sabe. O que talvez precise ser revisado, depois dos oito anos do Lula e depois destas eleições, quando a poeira baixar, seja o conceito da imprensa como formadora de opiniões.

Mas a corrida dos dez dias começa hoje e seu resultado ninguém pode prever com certeza. Virá alguma bomba de fragmentação de última hora ou tudo que poderia explodir já explodiu? O que prevalecerá no final, os índices inalterados da Dilma ou o noticiário? Faça a sua aposta.

Crédito: Pragmatismo Político

Notas de Leitura: Representações do intelectual, de Edward W. Said

Notas de Leitura: Representações do intelectual, de Edward W. Said: "Por exemplo, a diferença que delineei entre o intelectual profissional e o amador reside precisamente no fato de que o primeiro alega dista..."

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

sábado, 4 de setembro de 2010

Em 1969

Tenho recebido e-mails absurdos criticando as ações de Dilma Rousseff durante o período da ditadura militar e acredito que algumas pessoas, por serem jovens demais, acreditam que eram os jovens daquela época negra os bandidos. A título de curiosidade, selecionei algumas das situações contra as quais era a luta de estudantes, intelectuais e trabalhadores brasileiros. Espero que tenham paciência de ler.

“Este é tempo de divisas, tempo de gente cortada... É tempo de meio silêncio, de boca gelada e murmúrio, palavra indireta, aviso na esquina.” CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

“Dormia, A nossa Pátria mãe tão distraída Sem perceber que era subtraída Em tenebrosas transações.” CHICO BUARQUE DE HOLLANDA

Em 1969, a Junta Militar escolhe o novo presidente: o general Emílio Garrastazu Médici. Seu governo é considerado o mais duro e repressivo do período, conhecido como "anos de chumbo". A repressão à luta armada cresce e uma severa política de censura é colocada em execução. Jornais, revistas, livros, peças de teatro, filmes, músicas e outras formas de expressão artística são censuradas. Muitos professores, políticos, músicos, artistas e escritores são investigados, presos, torturados ou exilados do país. O DOI-Codi (Destacamento de Operações e Informações e ao Centro de Operações de Defesa Interna) atua como centro de investigação e repressão do governo militar.

O Governo Militar (1964-85) – Implantação da Ditadura Militar

- uso da repressão / investigação (SNI), censura

- bipartidarismo: ARENA X MDB

- prisões / tortura / exílio (artistas e políticos)

- oposição armada ao regime militar: guerrilha urbana e rural

De acordo com o jornalista Zuenir Ventura, o fanático brigadeiro João Paulo Burnier elaborou um plano criminoso, o Para-Sar. Uma loucura: os pára-quedistas da aeronáutica, secretamente, pegariam os inimigos do regime e jogariam do avião no mar alto, a uns 40 quilômetros da costa. Além disso, havia o projeto de explodir o gasômetro do Rio de Janeiro, começo da avenida Brasil, área industrial e de trânsito engarrafado. Morreriam umas 10 mil pessoas queimadas. Tragédia nacional. Burnier botaria a culpa nos comunistas e, com a população querendo o linchamento dos responsáveis, prenderia os esquerdistas e os executaria sumariamente. Que coisa diabólica, não? Só não se concretizou graças à bravura e ao patriotismo de um militar da aeronáutica: o grande brasileiro capitão Sérgio Ribeiro Miranda de Carvalho, o Sérgio Macaco. A operação teve de ser cancelada. Mas o capitão Sérgio foi afastado da Aeronáutica.

O que significa viver sob uma ditadura militar? É exagerado achar que a toda hora tem tanque na rua, soldados desfilando dentro das faculdades. Aparentemente não muda muita coisa, porque você vai às compras, ao dentista, à praia e ao cinema, namora e casa, vê televisão. A não ser o fato de que seu vizinho é oficial do Exército e você sabe que por isso ele manda aqui no prédio (e isso pode ser até bom para a vizinhança), o resto parece bem normal. Mas, se você tiver um pingo de consciência, desconfia que as coisas não vão bem. Existe um cheirinho de esquisitice: as pessoas falam baixo, há uma nuvem de mistério cobrindo o país, o estômago fica pesado demais.

Ninguém podia falar mal do governo. Reclamação na fila do ônibus era uma linha até à cadeia. Estudantes e professores que conversassem sobre política poderiam ser expulsos da escola ou da faculdade, devido ao decreto-lei nº 477 (1969), Imagine o clima dentro da sala de aula. Se o professor contasse aos alunos o que você está lendo neste livro, corria o sério risco de não poder voltar mais à sala de aula. Ou mesmo para a sua própria casa...

_ O que você acha da situação atual?

_ Eu não acho nada! Tinha um amigo que achava muito e hoje ninguém acha ele! To fora!

O que dizer sobre essa loucura toda? Foram rapazes e moças, muitos ainda adolescentes, que tiveram a coragem de abandonar o conforto do lar, a segurança de uma vida encaminhada, a tranqüilidade da vida de jovem de classe média, para combater um regime opressor com armas na mão. Pessoas que dão a vida pelo ideal de libertação de seu povo não podem ser consideradas criminosas. Mesmo que a gente não concorde com os caminhos trilhados. Eles mataram? Certamente. Mas nunca torturaram. Nem enterraram suas vítimas em cemitérios clandestinos. E se o tivessem feito nada disso justificaria a tortura e o assassinato executados pelo governo. Além disso, seria mesmo inadmissível pegar em armas contra um regime antidemocrático que esmagava o povo brasileiro? Que moral uma ditadura tem para definir como deve ser combatida?

Não houve guerrilheiro preso que não fosse barbaramente torturado. Ficar pendurado no pau-de-arara (um cavalete em que o sujeito fica preso pela barra que passa na dobra do joelho, com pés e mãos amarrados juntos) é um dos piores suplícios. Além disso, pontapés, queimaduras de cigarros, choques elétricos, alicates arrancando os mamilos, banhos de ácido, testículos amassados com alicate, arame em brasa introduzido pela uretra, dente arrancado a pontapés, olhos vazados com socos. Mulheres estupradas na frente dos filhos, homens castrados. A lista de atrocidades é infindável.

Os torturadores são animais sádicos. Mas além da maldade pura e simples, havia a necessidade estratégica: a tortura extraía confissões em pouco tempo, dando oportunidade de prender outras pessoas, que também seriam torturadas, revelando mais coisas e assim por diante. Infelizmente, a tortura revelou-se bem eficaz.

P.S. Sempre respeitei posições políticas alheias, não sou radical, mas pesquisem para ver onde estão hoje os remanescentes da ditadura.

Texto: Celeste Regina Pedroso Teixeira

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

CHEGOU O RASPUTIN: É A HORA DO VALE-TUDO


a candidatura Serra desidrata sob taxas alarmantes de perda de credibilidade. Um clima político seco envolve o representante do conservadorismo brasileiro. A menção ao nome 'Serra' registra níveis recordes de rejeição em todas os termômetros de intenção de voto. A pouco mais de 30 dias do escrutínio das urnas, o tucano não consegue obter uma única notícia positiva para mudar a sensibilidade predominantemente negativa da sociedade diante da hipótese de tê-lo como ocupante da Presidência da República. À antipatia alia-se agora a convicção majoritária entre os brasileiros de que ele será derrotado em 3 de outubro. Mesmo os que o apóiam compartilham dessa convicção. Sondagem diária feita pela Vox Populi indicava nesta 4º feira que a candidata Dilma Rousseff já teria 51% das intenções de voto, contra 25% de Serra. Em uma palavra, Serra não aglutina no presente, nem motiva para o futuro. A isso se dá o nome de decadência. A sua, a exemplo de toda decadência política, também inclui um Rasputin. Chama-se Ravi Singh, um autodenominado guru indiano que se anuncia especialista em milagres digitais para acudir aflitos na reta final de campanhas eleitorais. Mistura equivalente de santo milagreiro e charlatão, o Rasputin original, Grigori Rasputin, tornou-se eminência parda da autocracia russa entre 1905 e a queda do regime, em 1917. Quando mais a monarquia russa era odiada pelo povo e perdia densidade política, mais Nicolau II e sua esposa, a imperatriz Alexandra Feodorovn, se cercavam de bruxos e charlatões. O mesmo se deu na decadência do peronismo na Argentina, nos anos 70. José López Rega, um ocultista e auto-proclamado vidente, passaria a exercer então influência terminal sobre a viúva de Perón, Isabel Martínez de Perón, que assumiu a presidência após a morte súbita do marido. Lopez Rega, depois se soube, foi um dos organizadores da Triple A, organização para-militar envolvida no assassinato de dezenas de comunistas e militantes populares argentinos. Singh, o Rasputin de Serra, teria sido contratado por US$ 500 mil para promover 'a virada' no projeto de poder do tucano. O comando da campanha demotucana desaprovou as mudanças introduzidas pelo guru no site do candidato, que para isso ficou três dias fora do ar. Gonzales, o contestado marqueteiro de Serra, afirma desconhecer a origem da contratação. O único fato novo trazido para a campanha de Serra no bojo da auto-proclamada 'virada' resume-se a uma obscura quebra de sigilo fiscal de que teria sido vítima sua filha, Verônica Serra. No leito da extrema-unção eleitoral, o fato nebuloso deu ao tucano o discurso de 'família agredida pela conspiração petista', enredo que inspira tanta confiabilidade quanto um envelope de Ki-suco sabor framboeza. Verônica Serra, que foi sócia da irmã do banqueiro Daniel Dantas em empresa de internalização de capitais registrada em Miami, curiosamente, é apontada por tucanos como a responsável pela introdução do rasputin Ravi Singh na 'virada' prometida na campanha do pai.
(Carta Maior; 02-09)

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Crack Nunca Mais, pela reabilitação do RS















Por Katarina Peixoto

Programas de reabilitação de drogados costumam prescrever a aceitação de que o mundo é maior que a dependência do drogadito. Ou, em outras palavras, que o drogadito não é maior do que o mundo. Versões mais grosseiras dessas tentativas de desintoxicação costumam meter deus no meio dessa superação. Fato é que desintoxicar exige humildade. E uma consciência da própria finitude, quer dizer, um compromisso inadiável com a própria carne, com as próprias dores e possibilidades. Desintoxicar, por isso, exige um compromisso com a verdade. Não há espaço para mentira e suas variantes do auto-engano no caminho de luta contra a dependência.

Por isso falar em desintoxicação do Rio Grande do Sul faz sentido, e não exatamente como metáfora.

Um Estado que padeceu com a experiência Yeda Crusius não precisa de metáfora, mas de realidade e, portanto, de um compromisso inadiável com a verdade. A viagem tem sempre vida curta e a chapação, ao longo do tempo, mata. De 2003 para cá, quando a direita gaúcha rearticulou seu projeto de poder no estado do Rio Grande do Sul, a situação do Estado, perante si mesmo e perante o país realmente merece uma campanha como “Crack, nunca mais”. Não é sem propósito que o esteio propagandístico da chapação lança essa campanha. E, mais uma vez, não há metáfora, aqui.

A decadência econômica vem caminhando de mãos dadas com a degeneração política. Se esse vínculo é necessário ou não, pouco importa. Fato é que constatar sua existência no RS dos dias que correm é dizer a verdade. O lero-lero delirante do Déficit Zero é propagandeado a despeito do declínio nos índices de qualidade de ensino, de saúde, dos serviços públicos e nos grandes esquemas de saque do erário já combalido. Saques, por sua vez, investigados e denunciados antes pelo Ministério Público Federal e pela Polícia Federal. A chapação e a dependência não deram lugar à oposição. Mas esta, como um fígado, seguiu se regenerando.

Seria simplesmente ridículo ver Yeda Crusius na televisão, com aquela sua peculiar mirada ao infinito, não fosse desagradável. É constrangedor e triste ver no que as drogas podem transformar uma pessoa. E a mentira das sanhas ideológicas não apenas alienam politicamente, como demenciam. Tem algo demente, ali, naquele queixo acrítico, naquele déficit zero que outro dia até a representante não escolhida pelo voto do sofrido Ministério Público Estadual repete. Diabos, o que pode querer dizer déficit zero no MP estadual???

Para criticar o Olívio Dutra, diziam que nas Assembléias do OP se discutia até a compra de carteiras para escolas. Para criticar, diga-se. Porque o que fizeram com este homem é inominável. Agora, não podem mais fazê-lo. Não falam mais sozinhos, não intoxicam plenamente, não asseguram a terra das palavras delirantes nas mentes incautas. E o Rio Grande do Sul fica mais saudável.

Posso discordar de que tudo seja discutido numa assembléia de OP. Mas frente ao crime o que está em jogo não é a concórdia ou a discórdia; é a justiça, a lei. Ambas, em tempo, vêm sendo destroçadas neste estado. Desmantelaram a legislação ambiental, esquartejaram a legislação dos incentives fiscais e, com isso, a mínima decência tributária (o Fundopem do governo Rigotto tornaria Britto um republicano), desinvestiram deliberada e sistematicamente na saúde, recusaram e se abstiveram do recebimento e do empenho de verbas federais destinadas a políticas públicas para jovens, crianças, mulheres, mulheres negras, comunidades indígenas, catadores de papel, usuários do SUS.

Esse acúmulo de perdas só reforçou a dependência da máquina propagandística, o estuário de verbas estaduais para seguir tentando perpetuar o vício. Como se sabe, o vício tem muitos aspectos: culpa-se o outro, projeta-se a própria miséria e se denega qualquer responsabilidade. Assim se pode ver motoristas de táxi, lobotizados via rádio o dia inteiro, bradarem contra a Dilma porque os azuiszinhos não fiscalizam as pessoas que estacionam nas ruas. Crack,nunca mais.

E por falar nisso, o senador Simon está calado. O paladino da imparcialidade ativa que embruteceu, empobreceu e corrompeu o Estado em níveis nunca dantes vividos. Seu candidato, até que se prove o contrário, é um senhor tão obscuro como descompromissado, cujo discurso vazio só é superado pela ausência de vitalidade.

Quem quer manter essa carcaça em que o RS se tornou? Como um resto de gente, com dentes empodrecidos, ira contra o mundo, sobretudo incompreensível; quem caminha pelas ruas e vê as hordas de jovens chapados sabe do que se trata a imparcialidade ativa do déficit zero. Sabe o que desinvestimento, abstenção e recusa de assistência geram. Ainda virá à tona o quanto foi devolvido à união pelos governos (sic) da imparcialidade ativa e do déficit zero, em recursos sem empenho, destinados a políticas públicas no âmbito da assistência social, médica, à criança e ao adolescente, à juventude. Crack, nunca mais.

Reabilitação é um processo doloroso, mas diariamente fortalecido. Toda desintoxicação exige mais do fígado do que os porres de palavras cruzadas e falsas polêmicas. Mas funciona, constitui, faz sentido. É um caminho incerto, com recaídas, ou sem. Mas aponta para a agregação, a consciência do mundo e a independência moral. Sem chapação, sem mentira, sem saque do erário e sobretudo sem o delírio destruidor de futuro, de responsabilidade e de saúde.

O que será do RS reabilitado não se sabe, visto que a destruição não foi pouca nem irrelevante. Mas cessar a dependência, hoje, é vencer o vício, ganhar da mentira, recusar o auto-engano mistificador e empenhar-se com o futuro. Crack, nunca mais.