Fecho de ouro numa vida dedicada a denunciar o delírio na realidade
Quem não gostaria de ser objeto do tribunal eclesiástico da Santa Sé? Ainda bem que agora vibra apenas o seu martelo moral,
porque uma vez o sujeito ia direto para a fogueira, sem apelação.
Tomás de Torquemada morreu no ano de 1498. Pois, mesmo passados cinco séculos suas práticas continuam vivas e aplicáveis, agora apenas
com fogueira moral do PC (partido católico) do Vaticano.
Mesmo assim, com a fogueira simbólica e tudo, o Vaticano carbonizou
sábado passado o recém falecido José Saramago. Antes de queimá-lo
apedrejou-o mil vezes com as pedras do ramerrão dogmático católico.
Saramago, morto, não pode se defender. Bela lição de cristandade
deixa a Igreja romana! Dos quase noventa anos de vida, Saramago
criticou duramente as religiões em mais de três longas décadas.
Silêncio. Morto, o vil tribunal resolve levantar suas objeções morais
esfarrapadas contra o grande pensador.
De qualquer forma, a vileza presente tem o sabor simbólico do seu
contrário. Sinto que estão premiando Saramago. E a energia cósmica
do grande escritor diverte-se, dá cambalhotas poéticas em alguma
estrela brilhante do páramo infinito.
Quem não gostaria de morrer e ser credenciado como o que sempre
denunciou a farsa da ilusão religiosa?
Já se vê que Saramago acaba de merecer mais um Prêmio Nobel, o
de ter ajudado a desconstituir o delírio na realidade que é a paranóia
religiosa. Convenhamos, que com as armas da literatura, tecendo textos
ditados pela imaginação, este escritor corajoso ajudou a minar a
institucionalidade material das religiões, com seus podres poderes
terrenos, suas aterrorizantes ameaças metafísicas, sua eterna depreciação
da vida, suas trágicas opções políticas, seus bancos endinheirados e suas
práticas de corrupção, violência física e simbólica contra crianças e jovens,
alienação generalizada e sobretudo por espalhar dogmas que dividem os
humanos ao invés de reconciliá-los em boa vontade e tolerância mútua.
Saramago agora - de fato - deve estar perfeitamente feliz.
Coisas da vida.
Foto: Viúva de Saramago, Pilar del Rio, olha para o corpo no funeral em
Lisboa ao lado da filha dele, Violante.
Fotografia de Rui Gaudêncio/Publico.pt